Bem hajas, meu querido amigo, por me teres ensinado a escrever cartas de amizade. Há quase trinta anos que não te escrevia nenhuma e hoje foi um bom domingo para o fazer.
Era um rádio transístor amarelo, pequeno como uma tosta mista, lembras-te? Mas mais gordo, com duas antenas que lhe davam vida própria e um certo ar de criatura alienígena. Tinha um som manhoso, igual ao de todos os transístores a pilhas dos anos 70, provavelmente tinha a nossa idade, catorze anos acabados de fazer, tu já com pêlos nas pernas e erecções espontâneas e eu a pensar por qual rapaz me ia apaixonar nesse Verão. Todos os anos escolhia um diferente: primeiro, o António, porque tinha olhos azuis e cara de anjo; depois, o Francisco, porque tinha sardas e estava sempre a rir; e, depois, o Pepe, porque era espanhol e tinha um barco a motor, e por aí adiante. Tu ainda não sabias bem quem eras nem o que querias da vida, mas já te destacavas dos outros rapazes por seres mais bonito, mais delicado, mais subtil e com mais paciência para as nossas conversas parvas de adolescentes em busca da verdade, entre dois mergulhos na baía.
Ao fim da tarde pegávamos no rádio transístor e subíamos até ao Facho com um pacote de bolachas de água e sal para estarmos sossegados, longe da vila e dos outros rapazes e raparigas, porque ainda não sabíamos que éramos diferentes, mas já nos olhavam assim meio de lado, tu porque tinhas feitio de menina e eu porque pensava e agia como um rapaz.
Nesse Verão escrevi-te uma carta que te ofereci a ler na praia e te fez chorar de alegria. Essa carta já não existe, perdeu-se no tempo ou no meio das tuas sempre inesperadas mudanças. Viajaste pelo mundo, moraste em Londres, viveste a vida até ao limite e agora voltaste à mesma praia, à mesma baía, à mesma vila da nossa infância.
Já não me lembro que palavras ficaram escritas nesse papel, mas tenho a certeza de que foi a minha primeira declaração de amizade, a primeira vez em que, enquanto escritora em embrião, usei a minha vontade para dar a alguém que amava um presente em forma de carta. Quase trinta anos depois, voltei a ver-te e reconheci o mesmo rapaz andrógino, o mesmo olhar penetrante, o mesmo humor sarcástico que já tinhas com catorze anos. As pessoas não mudam, quando são más nunca se curam e quando são boas vencem sempre, por isso tu continuas vivo, belo, perfeito, agora mais tranquilo e sereno, mas sempre igual ao miúdo do transístor que subia comigo ao Facho para sonhar com o mundo tão grande, para lá da nossa praia tão pequena, como dois seres de um outro planeta que por engano foram despejados no universo terráqueo. Se calhar, nunca te disse que nesses finais de tarde mágicos em que dávamos as mãos e nos abraçávamos como siameses eu sentia asas a crescer nas tuas e nas minhas costas.
Hoje somos quase adultos, tu tens um trabalho e um casa e eu cumpri os meus sonhos, mas quando quiseres, volto a subir ao Facho contigo com um i-pod no bolso e as mãos cheias de amizade para te dar. Pode ser um dia destes ou daqui a uns meses, o tempo não conta para nada nestas coisas da amizade porque se o amor é como um rio que nunca corre da mesma maneira, a amizade é um oceano imenso e profundo que nunca seca nem se cansa de existir e onde o entendimento é eterno e o respeito reina acima de todas as coisas. Bem hajas, meu querido amigo, por me teres ensinado a escrever cartas de amizade. Há quase trinta anos que não te escrevia nenhuma e hoje foi um bom domingo para o fazer.
(in "A minha casa é o teu coração", Margarida Rebelo Pinto)